Ajoelhou-se no meio da avenida, sem se importar com os carros. Não esboçou reação quando a meia-calça desfiou no asfalto, quando os joelhos rasgaram e o sangue brilhou no piche. Nada mais a preocupava, ela não se pertencia mais. Fechou os olhos e fez uma prece, mesmo sem saber rezar.
Os carros desviavam, como se ao redor dela um domo invisível surgisse. Era a entrega. Ali, naquele cruzamento, ela deixou seu coração, como oferenda aos deuses mortos, num pano branco de cetim. Uma oferenda à um deus morto é um pedido de morte também. Não metafórica, muito menos literal. É a morte do invisível, da essência, daquilo que não tem nome.
As lágrimas queimaram-lhe o rosto e o peito, que agora exibia um buraco incômodo de se ver. Ela era inteira cicatrizes, rascunho do que havia sido um dia.
Tirou uma carta de tarot do bolso: rota fortunae. O rei está morto.
Ela nunca mais será a mesma.
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